Em 1864 Porto Alegre devia ter mais ou menos 40.000 habitantes, contabilizados entre homens livres, libertos e escravos. Considerando a população da cidade em 1820 (10.000 a 12.000 habitantes), por aquela época ela quadruplicara o que sem dúvida revela a presença de forte contingente de imigrantes alemães, que mudaram o aspecto do que até então havia sido um pacato burgo de base açoriana. Mas, naquela primavera, a tranqüilidade da cidade foi sacudida pela revelação de um hediondo crime: o açougueiro José Ramos e sua mulher, Catarina Palse, foram presos pela polícia como autores de vários assassinatos e acusados de fabricar lingüiça com a carne das vítimas, lingüiças estas que eram vendidas em seu estabelecimento e tinham muito boa aceitação no mercado! O incidente macabro ficou conhecido como "o caso da lingüiça", tendo gerado um longo processo criminal sobre o fato. Hoje, passado mais de um século, o crime das "lingüiças de carne de gente" é quase sempre relembrado pelos mais antigos, revelando que o incidente ficou perpetuado na memória popular da cidade. Segundo os autos do processo, os acontecimentos teriam se dado na região que se convencionava chamar de "Cidade Baixa", que começava na parte noroeste da colina onde se situava a "Cidade Alta", na sua descida em direção à Praia do Riacho. A designação da área continha em seu nome não apenas a referência topográfica original - terras baixas, que se espraiavam em direção ao rio Guaíba -, mas também a condição social de seus moradores, que não possuíam recursos para morar nos sobrados da "Cidade Alta". Entretanto, era uma região próxima ao centro da cidade e nela havia a Rua do Arvoredo, que tinha este nome pela vegetação abundante que ostentava em princípios do século, quase suplantando as casas existentes... Pois bem, foi nesta Rua do Arvoredo que os sinistros acontecimentos teriam tido lugar. O fator desencadeador da suspeita foi o desaparecimento de um morador da Rua da Varzinha, outra das ruas habitadas por gente humilde, que cruzava com a do Arvoredo no caminho da Praia do Riacho. Januário Barbosa, proprietário de uma taverna na Rua da Varzinha, desaparecera misteriosamente, mas fora visto pela última vez, no entanto, no açougue de José Ramos, na Rua do Arvoredo. Na porta deste açougue, permanecia com insistência o cachorro de propriedade do desaparecido, alertando a vizinhança pelos longos uivos que dava. Neste ponto, as narrativas divergem. Segundo outras fontes, o cachorrinho pertencia ao caixeiro da taverna, o menor José Inácio de Souza Ávila, o segundo a desaparecer misteriosamente, ficando mais uma vez o animal latindo na porta. Ainda segundo outra versão dos fatos, cachorro e caixeiro somem da cena, e o desaparecido em questão é o português Joaquim Martins, homem de posses, estabelecido com um armazém de secos e molhados na Rua da Igreja, esquina com a Rua do Rosário. Abandonando as versões constituídas ex-post ao fato, recorremos ao processo criminal, que narra ter sido a polícia alertada para os desaparecimentos e procedido a uma busca na casa do açougueiro. Para horror geral, foram descobertos no pavimento inferior da casa, numa cova a poucos palmos do chão, ossos humanos e um cadáver em avançado estado de putrefação. Os macabros achados do porão da residência não eram os das vítimas procuradas, as quais foram encontradas, partidas em pedaços e mutiladas, num poço existente no quintal da casa. E, para completar o horror, segundo o "auto de exumação e de busca", junto a eles foi achado morto o pequeno cão que, com seus uivos, despertara a suspeita dos crimes. Procedidas as diligências criminais, o cadáver do porão foi identificado corno de Claussner, o antigo proprietário do açougue de José Ramos, e, espalhados pela casa, vários objetos de uso pessoal dos desaparecidos, dinheiro e denunciadoras manchas de sangue. O casal foi encaminhado a delegacia no mesmo momento, quando chegaram lá cada um acusou o outro. A Catarina falou que tinha 27 anos, era solteira e acusou Ramos. José Ramos demorou a falar a verdade, mas falou. A população começou atirar pedras para a delegacia. E a Polícia respondeu com tiros para o ar. Aquele dia foi muito movimentado para a Polícia, a população e a imprensa.Como naquela época não tinha computador o processo foi escrito a mão. Os dois acusados demoraram um tempo para serem julgados. Quando foram julgados José Ramos pegou a pena de morte. Mas o imperador Dom Pedro II voltou atrás, e deu a pena de prisão perpétua. O José Ramos veio a falecer na cadeia em 1893, seco e doente. A Catarina Palse teve a pena de 20 anos, que foi reduzida para 13 anos. No ano de 1888, Catarina foi encontrada morta na esquina da Rua da Praia. O corpo estava repugnante. Consta que Charles Darwin, autor da teoria da evolução das espécies soube dos crimes da Rua do Arvoredo, e da época e do lugar onde todos os habitantes se transformaram em antropófagos, apenas disse:
— O instinto venceu a razão: há um chacal adormecido em cada homem.
Os livros Canibais – Paixão e Morte na Rua do Arvoredo, de David Coimbra e O Maior Crime da Terra de Decio Freitas são baseados nesses acontecimentos.
Em 2004 a RBS transmitiu o episódio: Crimes da Rua do Arvoredo no programa Histórias Extraordinárias.
Em 2004 a Rede Globo transmitiu o episódio: Crimes da Rua do Arvoredo no programa Linha Direta.
Uma história terrível e ao mesmo tempo fascinante, que nos lembra que coisas assustadoras acontecem e aconteceram em toda parte onde vivem seres humanos, inclusive nossa adorada Porto Alegre. Sempre que passo pela rua Coronel Fernando Machado (nome atual da rua do Arvoredo), lembro dessa história. Dos dois livros citados, O Maior Crime da Terra é o melhor na minha opinião, é um livro-reportagem, bem fiel aos fatos. Canibais é uma versão romanceada. Muito bom o blog, parabéns!
ResponderExcluirEu conhecia a história e li o livro do David Coimbra. Creio que seja interessante ler "O maior crime da terra".
ExcluirLembro que houve um curta-metragem sobre essa história.
"Fascinante" porque não foi com você ou alguém da sua família, Marcos.
ResponderExcluirÉ de fato uma história terrível e INTERESSANTE... Mas fascinante? Não, não seja ridículo.
Sua resposta está certa. Isso foi macabro.
ResponderExcluirCatarina Palse nunca foi encontrada morta na esquina da rua da Praia como foi descrito. Ela foi presa na cadeia municipal da cidade e foi posta em liberdade em 6 de maio de 1891 como noticiou o extinto jornal "A Federação" na sua edição número 107 na página 2:
ResponderExcluirhttp://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=388653&pesq=catarina%20palse